“Grupo de WhatsApp não é terra de ninguém”, afirma advogado sobre condenação de mulher por ofensas homofóbicas em Niquelândia
Para Fernando Cavalcante de Melo, manifestação do Poder Judiciário no caso de preconceito praticado por Poliana Francisca Silva de Andrade sobre a orientação sexual do jornalista Euclides Oliveira possui caráter pedagógico e serve de alerta aos moradores da cidade do Norte do Estado que gostam de opinar de forma criminosa, através de áudios encaminhados à exaustão, sobre a vida pessoal de terceiros
Uma moradora de Niquelândia foi condenada recentemente pelo Poder Judiciário a uma pena de 1 ano e 4 meses de prisão, convertida no pagamento de multa de três salários mínimos, pela prática do crime de injúria qualificada motivada por homofobia contra um outro morador da cidade, há pouco mais de dois anos.
O caso ocorreu 8 de agosto de 2022, através de uma sequência de 12 áudios gravados num grupo de WhatsApp da cidade do Norte do Estado em que a auxiliar de serviços gerais Poliana Francisca Silva de Andrade, de 38 anos, ofendeu o jornalista Euclides Oliveira, de 48 anos, em função de sua orientação sexual.
A sentença em desfavor de Poliana foi proferida no último dia 11 de setembro por ocasião do Programa Justiça Ativa, realizado pelo Tribunal de Justiça do Estado de Goiás (TJGO) na cidade do Norte do Estado, mas o desfecho do caso veio a público somente no início da noite da última segunda-feira, 21 de outubro.
No mês passado – com a presença de magistrados e promotores de outras localidades – o TJGO fez uma série de audiências objetivando reduzir o volume de processos em tramitação no âmbito da Comarca de Niquelândia.
Segundo o Poder Judiciário, após o jornalista procurar a Polícia Civil de Niquelândia para o registro da ocorrência – de posse dos áudios que materializavam a prática do crime – o inquérito policial relatado pelo delegado Gerson José de Souza foi encaminhado à apreciação do Ministério Público de Goiás (MPGO).
De acordo com o delegado, a quantidade de ofensas era tão extensa que foram necessárias cinco páginas do inquérito à transcrição de todo o conteúdo que foi gravado por Poliana nos áudios contra Euclides no dia do imbróglio.
Em abril de 2023, muito embora Poliana tenha apresentado sua defesa através de um defensor público, a Justiça acolheu a denúncia oferecida em fevereiro do mesmo ano pelo promotor da 2ª Promotoria de Justiça de Niquelândia, Pedro Alves Simões, em desfavor da auxiliar de serviços gerais, com base no entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o artigo 140, parágrafo 3º, do Código Penal.
Nesse sentido, desde junho de 2019, o STF entende que as condutas homofóbicas e transfóbicas enquadram-se na adequação típica de racismo, como injúria qualificada, pela utilização de elementos preconceituosos relacionados à identidade de grupos sociais vulneráveis e minoritários, como é o caso da comunidade LGBTQIAPN+.
ENTENDA O CASO – Na sentença, a juíza Thalene Brandão Flauzino de Oliveira detalhou que, no dia dos fatos, a ré Poliana Francisca Silva de Andrade injuriou a vítima “de forma voluntária e consciente” – ofendendo-lhe em sua dignidade ao chama-lo de “gay” mediante o uso de outros termos discriminatórios – após Euclides fazer uma postagem sobre sua continuidade como membro da diretoria do Sindicato dos Jornalistas do Estado de Goiás.
Nos autos do processo, a magistrada registrou que, em seu depoimento à Polícia Civil, Poliana disse que o jornalista a teria xingado; e que por isso, o xingou de volta, porém sem a intenção de discriminá-lo, mas que teria ficado nervosa e “perdeu a cabeça”.
Todavia, ela não compareceu na audiência realizada no mês passado pelo mutirão do TJ e o caso foi julgado à revelia de Poliana, no Fórum de Niquelândia.
O QUE DISSE A JUÍZA – “Assim, enquadrando-se a homofobia no conceito amplo e social de racismo, o ato de se injuriar alguém em razão de sua orientação sexual enquadra-se no tipo penal previsto no artigo 140, § 3º, do Código Penal, sendo que a condenação da ré (Poliana) é medida que se impõe. Em acréscimo, não é demais anotar que a negativa da ré de que não teve intenção de discriminar a vítima (Euclides), por si só, não afasta a tipicidade do delito, uma vez que pelo teor das mensagens encaminhadas é evidente a intenção da ré em ofender a dignidade da vítima valendo-se de sua orientação sexual”, afirmou a magistrada, num dos trechos de seu despacho, de cinco páginas.
A CONDENAÇÃO – Poliana Francisca Silva de Andrade foi, inicialmente, condenada a 1 ano de prisão, mas 10 dias-multa, em regime aberto.
Porém, como o delito de homofobia contra o jornalista foi cometido, segundo o artigo 141 do Código Penal, “na presença de várias pessoas ou por meio que facilite a divulgação” – no caso, um grupo público de WhatsApp com repercussão geral em Niquelândia – a juíza aumentou a pena de Poliana em mais 1/3, elevando-a para 1 ano e 4 meses de reclusão, além de 12 dias-multa.
No entanto, a magistrada entendeu ser possível a substituição da pena de prisão de Poliana pelo pagamento de três salários mínimos à vítima, o que corresponde atualmente a R$ 4.236,00.
Todavia, de um modo geral, o usual é que a reversão desses valores deterimados pelo Judiciário seja feito para instituições de caridade e não para a vítima do crime em si, como foi a opção da juíza na sentença.
A autora também foi condenada a pagar as custas judiciais do processo, mas ela ainda pode recorrer da decisão judicial proferida em primeira instância.
SENTENÇA PEDAGÓGICA – Para o advogado Fernando Cavalcante de Melo, a decisão da juíza Thalene Brandão foi muito bem fundamentada pela magistrada, que reconheceu a materialidade do crime praticado e sua respectiva autoria, no sentido de responsabilizar quem tem por hábito injuriar as pessoas ultrapassando os limites da civilidade e da educação em grupos de WhatsApp e outros ambientes virtuais existentes em Niquelândia.
“Uma decisão dessa natureza tem um viés pedagógico muito grande para reprimir esse tipo de crime e deixar realmente bastante claro às pessoas de que grupo de WhatsApp não é terra de ninguém, achando que não haverá consequências penais e civis. No caso concreto, houve uma consequência penal para a autora (Poliana) dessa injúria qualificada, homofóbica, em razão de orientação sexual da vítima (Euclides)”, comentou o advogado.
Ainda de acordo com o advogado Fernando Cavalcante, a condenação da autora se deu somente na esfera criminal porque a vítima, caso desejasse, também poderia ingressado com uma ação de reparação de danos morais contra Poliana, na esfera cível, também passível de gerar o pagamento de uma indenização.
O QUE DISSE A VÍTIMA – “Nesses 18 anos que trabalho como jornalista em Niquelândia, já ouvi todo tipo de piadinhas e chacotas maldosas nesses grupos de WhatsApp sobre minha orientação sexual. O preconceito existe e sempre vai existir, mas eu nunca quis denunciar esse tipo de prática contra minha pessoa às autoridades. Também em 2022, ano em que ocorreu esse caso comigo, o Eduardo Leite (governador do Rio Grande do Sul, do PSDB) assumiu-se como um homem gay e disse, na época, que a sexualidade dele jamais deveria ser assunto por tratar-se de questões da vida privada. Eu também penso assim, mas diante de áudios tão grotescos e maldosos, não vi outro caminho a seguir a não ser buscar, para minha pessoa, o respeito que sempre tive como jornalista aqui na cidade. Espero que – com essa decisão da juíza, que condenou essa mulher de forma exemplar – as pessoas pensem duas vezes antes de cometerem qualquer tipo de preconceito ou difamação nesses grupos de WhatsApp em nossa cidade”, afirmou o jornalista Euclides Oliveira.