“Estávamos enxugando gelo”, desabafa secretária de Saúde após extinção da barreira sanitária em Niquelândia
Segundo Cida Gomes, decisão de liberar o acesso amplo e irrestrito para moradores de outras localidades foi motivada pela pressão exercida por niquelandenses que organizaram estratégias de entregar comprovantes de residência para parentes e amigos de fora, inclusive com práticas intimidatórias
Acabou. Vencida pelo cansaço, a Secretaria Municipal de Saúde de Niquelândia liberou, às 19 horas do sábado (11), todos os acessos por rodovias estaduais e federais à cidade do Norte do Estado por moradores de outros municípios, medida que havia sido adotada há 20 dias na tentativa de frear a disseminação do novo coronavírus.
De acordo com titular da pasta da Saúde, Cida Gomes, as equipes da própria secretária; da Polícia Militar (PM) e do Corpo de Bombeiros [que faziam o trabalho de fiscalização na entrada da cidade, na Avenida Anapolina] estavam sendo desacatados e entrando em constantes atritos com niquelandenses hoje residentes em Goianésia; em Goiânia; em Anápolis; e em Brasília.
Sob o argumento de visitar pais, tios e demais parentes – mesmo diante da recomendação de “ficar em casa” pelo Ministério da Saúde – “turistas de pandemia” transformaram Niquelândia numa verdadeira “colônia de férias” nos condomínios de casas existentes às margens do Lago Serra da Mesa depois que a contaminação expandiu-se rapidamente em regiões mais populosas de GO, DF e Entorno do DF.
REGRAS BURLADAS – “Nós tomamos essa decisão na sexta-feira [dia 10], à noite. Infelizmente, alguns moradores da nossa cidade estavam indo às cidades com incidência de contaminação pelo Covid-19 – em seus carros, com placas de Niquelândia – para buscar seus entes queridos e até mesmo amigos, para trazê-los ao nosso município. Nesse dia [na sexta], eu mesma passei por um problema muito constrangedor, na barreira. Haviam chegado três carros na cidade, quando apareceu um parente desse pessoal, de moto. Esse indivíduo [não-identificado] foi agressivo comigo dizendo que a mãe dele morava aqui em Niquelândia; e que ali [na barreira] estavam o irmão dela; o irmão de um tio dele; os netos; e as noras, enfim. Esse rapaz disse para mim: ‘eles vão ‘pra’ lá sim’. Eu respondi que eles [os familiares] não moravam em Niquelândia; e fiz todos voltarem para Aparecida de Goiânia, de onde vieram. Então, por esses e outros relatos – meu e das equipes em serviço – ficou muito difícil trabalhar assim. Estávamos enxugando gelo”, afirmou a secretária de Saúde de Niquelândia.
De acordo com Cida Gomes, ela própria recomendou a seu irmão – morador em Goiânia – que não viajasse para Niquelândia, pois a entrada dele em Niquelândia não seria liberada.
De um modo geral, segundo ela, não havia mais razão uma barreira sanitária em funcionamento contra o Covid-19 se as famílias que moram em Niquelândia estavam invocando o direito de entrada dos parentes vindos de fora.
Dada essas dificuldades todas – aliadas ao custo do banco de horas para policiais e bombeiros em serviço extra às atividades diárias, bem como fornecimento de refeições e aluguel de tendas – o Poder Executivo optou pela desativação da atividade fiscalizatória preventiva.
SEM CASOS, SEM PREOCUPAÇÃO – “Eles [as pessoas contrárias à restrição] simplesmente nos diziam que, como a cidade não tem casos confirmados ou suspeitos, não viam a necessidade dessa medida [a barreira]. Eu vejo que esses moradores de Niquelândia simplesmente não estão preocupados que ocorra aqui o que estamos vendo [o crescente número de mortos] na imprensa nacional e internacional, todos os dias. Goianésia, por exemplo, está praticamente do nosso lado [150 quilômetros] e já tem 13 casos confirmados, sendo que muitos desses niquelandenses que forçaram a entrada são hoje, justamente, moradores de Goianésia; e que as famílias estão desesperadas com a situação de lá, resolvendo buscar os parentes e trazer pra cá”, afirmou a secretária.
Por tudo isso, Cida Gomes já não confia mais que Niquelândia permanecerá sem casos confirmados de coronavírus, de agora em diante.
HISTÓRICO – Como se sabe, boa parte da população pressionou o prefeito Fernando Carneiro (PSD) à adotar tal restrição de circulação de pessoas não-residentes em Niquelândia, que eram obrigadas à apresentar algum comprovante sobre a propriedade de imóvel na cidade [como escritura, conta de energia ou água.
Na sequência, o Ministério Público (MP) ingressou com ação judicial na Comarca de Niquelândia, questionando a medida, sob a inegável argumentação do direito de ir e vir, garantido pela Constituição Federal.
Assim, o juiz Camilo Schubert Lima acatou o pedido do MP e a barreira sanitária teve de ser retirada, dois dias após sua implantação. Porém, a Prefeitura de Niquelândia recorreu ao Tribunal de Justiça de Goiás (TJ-GO), em Goiânia; e assegurou o direito de retomar o fechamento os acessos à cidade.
Um dia antes disso, o ministro Marco Aurélio de Melo, do Supremo Tribunal Federal (STF) havia decidido que, diante do agravamento da pandemia de Covid-19 no Brasil, governadores e prefeitos poderiam sim usar da prerrogativa de limitar a entrada de “estranhos” em seus domínios, para prevenir o contágio desenfreado por coronavírus.
Como a população de Niquelândia não colaborou com a medida, a prefeitura agora soma esforços em outras áreas: destinou dois leitos do Hospital Municipal Santa Efigênia para o isolamento de pacientes eventualmente infectados pelo Covid-19, com respiradores novos doados pela Anglo American. Os equipamentos chegam à cidade nos próximos dias.
Outra medida que está sendo posta em prática é o acordo firmado com o médico Bonfinho Ribeiro Sobrinho para que os 25 leitos do antigo Hospital Nossa Senhora da Abadia [desativados desde que o local passou a funcionar apenas como clínica médica] sejam utilizados como “Unidade de Triagem” de pessoas com sintomas compatíveis com a infecção pelo novo coronavírus [como tosse, febre e falta de ar, por exemplo].